A Casa dos Espíritos: uma leveza brutal

     Finalizei A Casa dos Espíritos de Isabel Allende com o coração mexido. Há algo na literatura latino-americana que não está presente nas obras do resto do mundo. Uma magia, um calor, um entendimento mútuo para comigo. Sinto que as palavras tomam vida de outra forma, elas dançam em um ritmo diferente e embalam um jogo, um trava-língua de sentimentos, uma conversa direto com a alma. Lembro que percebi isso quando iniciei a leitura de A Hora da Estrela, da Clarice Lispector - diria que a potência da brasileira foi maior, mas as obras são incomparáveis por suas distâncias. Bom, no futuro escrevo mais sobre Lispector, agora é hora de falar de Allende.

Sin título (America, 1971)
Gracia Barrios

    Isabel Allende nasceu em Lima, no Peru, mas possui nascionalidade chilena. Por ser filha do primo de Salvador Allende, compartilha de seu sobrenome, mas a conexão com o ex-presidente não permanece apenas no âmbito familiar. Após ser uma refugiada política, publicou A Casa dos Espíritos em 1982, um dos principais livros que criticam a ditadura chilena comandada por Pinochet que durou de 1973 até 1990.

    O período militar se iniciou três anos após a vitória de Salvador Allende, primeiro líder de esquerda a tornar-se presidente no país, contra Jorge Rodriguez, candidato dos setores conservadores da sociedade. Essa conquista atiçou os ânimos da direita que jurava que os comunistas iriam destruir o Chile. Então, enquanto o presidente implementava políticas que beneficiavam os setores mais pobres, pessoas de privilégios organizavam greves e sabotagens. A presença de agitadores fascistas e a orquestração de manobras políticas abriram caminho para os golpistas tomarem o poder. Os militares liderados por Pinochet, assim, deram um golpe de estado, instaurando a ditadura assassina que durou 20 anos e censurou, torturou e matou jornalistas, artistas, políticos e opositores do regime.

Passeata a favor de Salvador Allende

    Apesar de responsável pela consagração do livro, o momento histórico aparece em "A Casa dos Espíritos" apenas ao final. Antes, o leitor é envolvido na vida de gerações e acontecimentos mágicos. Viajamos até a década de 20 e encontramos a família Del Valle, composta por uma mãe sufragista, um pai que busca ser vereador e cerca de 11 filhos - dentre eles, Clara, uma menina de 9 anos que detém poderes clarividentes. Na ficção da narrativa, a história apenas é capaz de ser contada devido aos escritos de Clara em seus "cadernos de anotar a vida", que somam quantidades gigantescas de memórias guardadas até o momento de sua morte. Esse costume de manter em palavras todas as situações iniciou quando, ainda pequena, depois da primeira cena de brutalidade descrita, decidiu parar de falar. Essa escolha compõe, na obra, um dos primeiros momentos que me tocaram.

    "E não conseguiu mover-se até aparecerem as primeiras luzes do dia. Então, deslizou até sua cama, sentindo por dentro todo o silêncio do mundo. O silêncio encheu-a por inteiro, e ela só voltou a falar nove anos depois, quando emitiu sua voz para anunciar que ia se casar." (P. 49)

    Situações que fogem do comum, como a mencionada, são descritas sem qualquer alarde. As circunstâncias simplesmente são o que são. Isso ocorre também na descrição de cenas cruéis, que envolvem necrofilia e estupro. Nós, leitoras feministas do século XXI, somos passíveis de surpresas desagradáveis, desconforto e indignação, mas esses sentimentos são suscitados apenas a partir do nosso conhecimento de mundo, já que a narrativa apenas apresenta, e não julga. Rotas de existências inteiras se amarram em momentos calamitosos, mas são contadas em uma escrita que não toma partido: é leve, pontual e não lamenta. Essa estrutura, ao meu ver, é perfeita para demonstrar que a vida simplesmente é.

    O fluir do livro, que desenvolve assuntos absurdos em amarras que se ligam, embala de tal forma que o crescimento de personas é natural. Não lemos que tal personagem envelheceu, sentimos. E essa percepção foi tão forte que tomou o meu olhar. Logo não estava mais acompanhando cenários tocantes, mas sim a trajetória daqueles indivíduos do papel. Comecei a observar com uma visão macro, assistindo a vida de cima, e me deparei com a minha própria insignificância.

    Somos seres humanos, fabricamos momentos, influenciamos nossos pares e nos preocupamos com o dia a dia, mas tudo passa em uma velocidade gigantesca. Temos a constante ilusão de viver no presente, mas os instantes que ocorrem se tornam passado instantaneamente. Crescemos com nossas próprias vaidades, as adversidades parecem gigantescas, mas quem somos nós na história do universo? No livro, a vida de cada pessoa influencia o desenrolar dos acontecimentos. Grandes situações são consequências de pequenas ações tomadas por pessoas efêmeras. E bom, a realidade não é assim?

    "Desconfio que tudo que aconteceu não seja fortuito, mas que corresponda a um destino traçado antes do meu nascimento e que Esteban Garcia seja parte desse desenho. É um traço rude e torcido, mas nenhuma pincelada é inútil. (...)No canil, tive a ideia de que estava armando um quebra-cabeças em que cada peça tinha uma localização precisa. Antes de colocá-las todas, parecia-me incompreensível, mas estava certa de que, se conseguisse terminá-lo, daria um sentido a cada uma, e o resultado seria harmonioso. Cada peça tem uma razão de ser tal como é, inclusivamente o coronel Garcia." (P.447)

Acontece (1967)
Gracia Barrios

    Um ponto interessante que notei foi a constante previsão de acontecimentos futuros. A obra apresenta frases-chave que indicam detalhes marcantes de atos que irão ocorrer, permitindo uma espiada no destino. As situações são sempre fortes, mas não explicadas naquele momento narrativo, produzindo um sentimento similar à clarividência de Clara, que repentinamente soltava profecias que sempre se cumpriam.

    Essa inserção na experiência do personagem me lembra outro ouro do livro: o narrador indireto livre. Nessa modalidade, a narrativa se constrói em terceira pessoa, mas detém de palavras que os personagens usariam. Dessa forma, apesar de observar à distância, como se estivéssemos escutando uma história, somos surpreendidos por momentos de súbita absorção na mente das personas. Essas partes são extremamente naturais e fazem sentido com o teor da história, que dá independência aos indivíduos e não julga suas ações. Essa estratégia indica, também, que a trama se desenrola a partir do protagonismo de cada personalidade apresentada, apontando que todos possuem igual importância no decorrer. Além disso, há alguns parágrafos em primeira pessoa, retratando a visão de Esteban Trueba, um dos personagens mais marcantes.

     Para além dos detalhes apontados, me choquei com as descrições do Golpe, derramei lágrimas em cenas de tortura e me questionei quanto à maldade humana. Os acontecimentos descritos são, infelizmente, ainda muito atuais. A crueldade é resultado de mentes restritas a ideias sensacionalistas e, em um mundo onde o terror se faz presente, me pergunto se não estamos vivendo em uma distopia. Apesar desse aclamado caráter histórico, porém, o ponto alto de "A Casa dos Espíritos" foi, para mim, a poética de sua estrutura. Recomendo o livro por sua leveza brutal e tenho marcas da visão macro da vida suscitada pela obra.

    As artes escolhidas para ilustrar o post são de Gracias Barrios, uma artista chilena e amiga de Salvador Allende. Apesar de sofrer censura, prosseguiu com suas produções após o Golpe.

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